quarta-feira, 12 de maio de 2010

FRAGILIDADE NA POLITICA CULTURAL


foto google
 
ONG Djumbai foi denunciada por estelionato e fraude porque não repassou verba encaminhada para Pontos de Cultura

Michelle de Assumpção


Saltar das páginas de vida cotidiana e problemas urbanos para as páginas culturais dso jornais sempre foi motivo de orgulho para os grupos populares da periferia. O inverso desta situação seria portanto um retrocesso. Mas, às vezes, mesmo que bastante constrangedor, é inevitável e necessário. Durante a semana passada, uma instituição pernambucana credenciada no meio das políticas raciais, sociais e culturais foi processada por outra, igualmente respeitada na área da cultura. A ONG Djumbai foi denunciada por fraude e estelionato pelo produtor Beto Hees, empresário de Lia de Itamaracá, Patrimônio Vivo de Pernambuco e Embaixadora da Casa da Cultura. O motivo: recursos de dois projetos aprovados pelo Ministério da Cultura, cujo beneficiado seria o espaço cultural Lia de Itamará, não foram repassados pela ONG.
O prejuízo para Lia é calculado pelo produtor em R$ 100 mil. A inadimplência da ONG prejudicou mais dois pontos de cultura que também usaram o CNPJ da instituição pela falta de uma inscrição própria. No ano de 2008, Lia de Itamaracá fez parceria com a Djumbai para o encaminhamento de dois projetos. O Centro Cultural Estrela de Lia foi aprovado no valor de R$ 70 mil, pela Lei Rouanet governamental. No mesmo ano, o Minc também aprovou o Ponto de Cultura Lia de Itamaracá, no valor de R$ 180 mil, divididos em três parcelas iguais, liberadas em três anos. Do primeiro projeto, Beto Hees diz que a ONG ficou lhes devendo cerca de R$ 20 mil. As oficinas previstas começaram em Itamaracá e não puderam ser continuadas. Sobre os recursos do Ponto de Cultura, Lia diz ter recebido a primeira parcela, com a qual comprou um equipamento de som para as apresentações da ciranda na ilha. Do dinheiro referente à segunda parcela, recebeu R$ 20 mil. Ou seja, cerca de R$ 40 mil ficaram, segundo Lia e Beto, com a ONG.

Segundo o Ministério da Cultura de Brasília, não há denúncia formalizada na instituição contra a ONG. Beto Hees conta que, junto com a representação regional do Minc (que mantém escritório no Bairro do Recife), tentou pressionar a Djumbai para que o pagamento fosse feito. Depois disso. Gilson Pereira, um dos coordenadores da Djumbai, passou dois cheques no valor de R$ 10 mil cada um. Os cheques foram devolvidos pelo banco e, em função disso, Beto recorreu à polícia e formalizou a denúncia de estelionato e também de danos morais contra o coordenador e a instituição. Esta semana, ele deve encaminhar a queixa ao Ministério Público.

Eliete Braga, coordenadora geral de gestão dos Pontos de Cultura do Minc, afirma que a documentação para que a Djumbai receba a terceira parcela referente ao Ponto Lia de Itamaracá está pronta, mas a inadimplência da ONG com relação ao Estrela de Lia impede o pagamento. Esta mesma inadimplência ocasionou prejuízos para mais dois pontos de Cultura, o Ensinamentos de Mãe Preta e Coco de Umbigada. "Da primeira parcela que foi de R$ 60 mil, a Djumbai só repassou R$ 27 mil. Nós não tivemos como prestar contas. Então não recebemos mais as parcelas seguintes", conta Mãe Lúcia de Oyá, que seria a coordenadora deste Ponto de Cultura.

Reflexos da inexperiência

O coordenador da Djumbai, Gilson Pereira, evidencia as dificuldades do terceiro setor em acompanhar e apoiar o desenvolvimento das culturas populares perante toda a legislação vigente. Ele defende sua instituição, reforça que o problema não foi pessoal (contra ele, Gilson) e diz que muitas vezes as ONGs têm que usar jogo de cintura para funcionar. "A gente não tem capital de giro. Você faz um jogo entre projetos. Isso juridicamente não é permitido, mas é comum no terceiro setor", justifica.

Gilson Pereira diz que vai aceitar qualquer decisão do MinC ou do Tribunal de Contas da União, que é onde a denúncia deve terminar. E conclui dizendo que pior que resolver com o Ministério Público é vivenciar o mal-estar com grupos com que trabalha há vários anos. "A Djumbai esteve 3 anos com o Ministerio Público no SOS Tortura. Agora, levar a discussão para os meios de comunicação não vai reverter nada. Piorou, pois o recurso que poderia ser liberado não vai ser mais", pontua o coordenador.

A coquista e produtora Bethde Oxum acredita que o problema, de certa forma, expõe o Ministério e sua política cultural, contemporizando a partir de razões mais complexas. "Na época, em 2004, a gente não tinha CNPJ nem a compreensão do estado. Hoje tem edital que utiliza a oralidade. Na época eu não sabia escrever um projeto, não tinha representação jurídica, a gente tinha só um terreiro. A cultura popular não tinha representação e era uma exigência. Eles (a ONG), no papel de incubadora social, entraram com projeto representando a Umbigada, os Ensinamentos de Mãe Preta e Lia de Itamaracá" justifica.

A artista e produtora teme que a repercussão negativa do caso impeça o desenvolvimento das suas conquistas. Inclusive a de receber o Prêmio Asas, um prêmio de excelência em desenvolvimento de propostas culturais em Pontos de Cultura. Beth tem seu trabalho reconhecido. Por outro lado, a situação jurídica da entidade que a representou (desde 2007 não usa mais o nome da Djumbai nos seus projetos) é uma ameaça até hoje. Beto Hees conta que também teme o futuro diante das implicações negativas de sua denúncia. Mas nada pode ser, para ele, pior que ficar desacreditado perante a comunidade, pela não realização dos projetos iniciados.
Sem verba não há atividade no Estrela de Lia

Patrimônio Vivo de Pernambuco, a cirandeira Lia de Itamaracá, aos 66 anos de idade, está à espera de mais um ano para se aposentar como merendeira de uma escola pública do estado. Ela já é aposentada pela Prefeitura de Itamaracá, por trinta anos de serviços prestados. Trabalhava doze horas por dia: seis na municipal e outras seis na estadual. No ano passado, saiu da cozinha e ficou à disposição da Fundarpe, que a elegeu Embaixadora da Casa da Cultura.

Lia deveria se apresentar aos turistas como uma dama da cultura local. Passadas algumas apresentações, ela cobrou seu cachê atrasado e as condições prometidas (sala só para ela, transporte e acompanhante). O dinheiro foi pago, mas Lia não assinou mais contrato para novas apresentações. Lia continua embaixadora, mas o salário ainda é o de merendeira. Recebe uma verba mensal, enquanto Patrimônio Vivo de Pernambuco, mas gostaria de se apresentar mais vezes no seu estado.

O produtor da cirandeira, Beto Hees, revela que os últimos acontecimentos - como o processo contra a Djumbai - não objetivam vitimizar Lia. "Lia não está mal. Ela não está passando fome, tem vários shows marcados fora do estado. Ela apenas não pode mais bancar sozinha as atividades do Ponto de Cultura. Está tudo parado lá", conta Beto. A cirandeira está agora esperançosa diante da aprovação de um novo projeto de Ponto de Cultura, desta vez, conveniado à Fundarpe, que deve anunciar o resultado dos escolhidos nos próximos dias. Com empresa constituída, ou seja, CNPJ próprio, Lia pretende construir uma história diferente e se redimir diante da comunidade. É o mínimo que um Patrimônio Vivo pode fazer.



Diário de Pernambuco

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