Para a nova face do PSB, que ainda mantém o nome de Partido Socialista Brasileiro, foi decisivo o papel da direção partidária de Pernambuco. Nesta nova face, que alguns já chamam de novo fascio, têm lugares decisivos o avô Miguel Arraes e o neto Eduardo Campos. Mas como opostos e ruptura em um processo de morte, enterro e transformação. Façamos um brevíssimo recuo.
Em 13 de agosto de 2005,
escrevi que os obituários, sempre tão generosos no olho e olfato de abutres,
pois sempre esvoaçam e rondam a agonia dos grandes homens, daquela vez haviam
falhado no alcance e na mira. Sempre tão bons no faro e argúcia, daquela vez os
obituários haviam errado o cadáver do brasileiro Miguel Arraes. No entanto
hoje, no mais recente outubro de 2014, que continua o trágico 13 de agosto
deste ano, o cadáver é outro. Ou melhor, Eduardo Campos ainda não é um cadáver,
como foi o socialista e avô em 2005. Hoje, Eduardo Campos se tornou um
fantasma, que ronda o Brasil a partir de Pernambuco.
A mudança no perfil do PSB
foi de tal forma, que não devemos falar em diferenças. Talvez devêssemos falar
na decomposição de um nobre que gerou um vampiro. Quando era presidente
nacional do PSB, Miguel Arraes alertava que as eleições não deviam contaminar o
partido. Mas o que Arraes dizia, os valores pelos quais o pensador de esquerda
Miguel Arraes lutava têm agora a moldura de marketing. As ideias de Arraes não
mais lutam, hoje apenas enlutam. Em lugar da luta, o luto, das suas ideias.
Para o luto de Eduardo Campos.
Desde o velório, diante do
seu corpo, os sinais de esgotamento do PSB pulavam entre os vivos. De fato, no
contexto armado do show mortuário em frente ao palácio do governo de
Pernambuco, cujo mote era uma tragédia, entre os telões com os atores políticos
e pessoas com bandeiras eleitorais do PSB e de Marina Silva, a ressurreição
falava mais perto à terra. Porque o significado era mais simples e baixo, nas
condições do show eleitoral criado em torno da missa: a ressurreição era para
Marina Silva e a inclinação à direita.
Ali começou a campanha da
onipresença da direita no Recife e no Brasil, de modo sufocante e matador da
sensibilidade e inteligência. A trágica morte de Eduardo Campos foi usada sem
nenhum pudor. Desde o velório, plantaram-se boatos de que Dilma e o PT eram
responsáveis pela morte física de Eduardo Campos. Durante toda a campanha,
Eduardo Campos se tornou o personagem El Cid, aquele que morto teve o cadáver
posto, amarrado a um cavalo, a cavalgar na batalha, para que desse a ilusão de
vida e assim melhor ânimo espalhasse na tropa. Mas o caminho à direita já
estava aberto bem antes do feito heroico do novo El Cid.
Para o PSB, Arraes como
pensamento já era passamento, morte, anterior ao desastre de 13 de agosto de
2014. A sua prática, do avô, a sua destruição, pelo neto, estava em queda antes
da tragédia do avião. Aquele abraçar contrários, ex-adversários, inimigos do
avô Arraes, como Jarbas Vasconcelos, ao mesmo tempo que se voltava para um
lugar distante de aliados, amigos de esquerda e socialistas históricos, a quem
antes havia abraçado, isso já estava claro, porque se fazia a olhos vistos. Mas
sempre com um sorriso aberto, que era um passaporte para a mordida, que a
maioria de nós não víamos.
Uma das maiores
contribuições de Maquiavel foi abstrair da análise política os propósitos
virtuosos, repletos de valores éticos e edificantes. Mas isso não significa que
a moral, no reino até dos animais, tenha deixado de existir. Daí que lembramos
de passagem a mudança assustadora do PSB em Pernambuco, que se transformou
também em partido fincado em laços de amizade e genéticos. Com Arraes, naquele
tempo que se apagou definitivo, havia ex-companheiros do tempo da resistência
democrática que o acusavam de concentrador, porque não distribuía generoso
cargos, valores e representações, e, pior, não abria espaço para que os
ex-companheiros também ascendessem ao poder no tempo das vacas gordas. Quanta
ironia, quando se compara com o PSB que Eduardo Campos construiu. O neto não
seguiu o avô, embora tenha usado a sua memória mais de uma vez para receber
apoios na esquerda e receber atenções materiais dos governos Lula e Dilma.
Quando se olha a
administração pública, pela incidência de nomes vinculados aos Campos e Arraes,
temos a impressão de que estamos diante de novos nobres, ou um clã de novos
Kennedys. A comparação, a lembrança do nome Kennedy, não vem por acaso, mas não
cabe um aprofundamento nos limites deste artigo. O fato é que o DNA Arraes
aparece em todos os caros cargos da administração. Segundo uma pesquisa
publicada no site Vi o Mundo, em reportagem de Conceição Lemes, Chico Diniz e
Daniel Bento, os parentes de Eduardo Campos se estendiam da mãe Ana Arraes, no
Tribunal de Contas da União, a sobrinhos, tia, sogro, cunhada, ex-cunhado e
primos em cargos relevantes de Pernambuco. O que mais chamava a atenção na
lista era a presença de três gerações de familiares de Eduardo e Renata Campos
na administração estadual, inclusive jovens. (Em
http://www.viomundo.com.br/denuncias/eduardo-campos-tem-parentes-no-governo-secretario-nega-nepotismo.html
) É uma família de gênios, reconheçamos. Da mãe aos primos e filhos, a quem já
prometem um futuro venturoso na política.
Que diferença, para os
princípios “atrasados“ do velho Arraes, que exigia da filha Mariana uma prática
de jornalismo sem privilégios, pois a deixava correr perigo em programa de
rádio de Direitos Humanos, como fui testemunha e com quem trabalhei. Para o
velho pensador, para o socialista Miguel Arraes, a família era acima de tudo os
trabalhadores espoliados. Uma das maiores dificuldades de Gregório Bezerra, no
primeiro de abril de 1964, foi convencer camponeses a não virem ao Recife. Massas
de trabalhadores se dispunham a vir à luta armados apenas de facões, facas e
enxadas contra fuzis e tanques do exército brasileiro. Bastaria esse fato para
dar a dimensão do velho. Mas ainda é pouco. A coisa dita assim, até parece que
massas ignorantes, fanatizadas, dispunham-se ao sacrifício, a entregar o
próprio corpo ao genocídio. Mas não. Tal amor era manifestação testemunhal por
atos concretos do que foi o primeiro governo Miguel Arraes. É com ele que surge
o revolucionário, o pioneiro e odiado “Acordo do Campo”: trabalhadores da
cana-de-açúcar tiveram os mesmos direitos que os trabalhadores urbanos de
Pernambuco: salário, décimo terceiro, carteira assinada… deixavam de ser
escravos. Daí o fanatismo daquela grande família.
As últimas notícias falam
que na portaria da sede do PSB, a quem os jornais chamam com acerto de “sigla”,
na região central de Brasília, chegaram a ser pregadas folhas com a inscrição:
“Aqui o socialismo resiste. #nenhumvotonoPSDB”. Coitados dos idealistas, tão
inocentes. E tão frágeis, porque afinal se mantiveram neste novo PSB, que nega
e renega o que foi o partido de Miguel Arraes. O compressor da direita de
Eduardo Campos foi mais pesado.
Há nove anos, em um 13 de
agosto, escrevi “Arraes, urgente”. Naquele dia, para a memória de um dos mais
ilustres brasileiros, lembrei uma declaração de princípios do velho político:
“Como homem público, tenho que esperar tudo, sem queixa, porque é minha
obrigação ir pra cadeia, se é pra manter a minha posição de defesa do povo e
não capitular diante dele. É minha obrigação ir pro exílio, se não posso ficar
na minha terra”.
Quantas ciladas a vida nos
prega. Hoje, com o apoio do PSB à direita brasileira, a história responde com o
fantasma do neto Eduardo Campos: Arraes, adeus.
Urariano Mota, escritor e jornalista. Autor do romance Soledad no Recife, sobre o assassinato pela ditadura brasileira da militante paraguaia Soledad Barret, grávida, depois de traída e denunciada por seu próprio amante o Cabo Anselmo. Escreveu também O filho renegado de Deus e seu livro mais recente é o Dicionário Amoroso do Recife. Seu primeiro livro foi Os Corações Futuristas, um romance na época do ditador Garrastazu Médici. Na juventude publicou artigos, contos e crônicas nos jornais Movimento e Opinião.
Da redação Sináculo
Fonte: Correio do Brasil
Imagens; Reprodução / Internet
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