Economista formada pela Universidade Federal de Uberlândia,
Tereza Campello participou da criação do programa Bolsa Família, em 2003. Desde
2011 é ministra do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome. Ela conversou
com o 247 sobre mudanças que podem ocorrer no Bolsa Família caso Dilma Rousseff
seja afastada da presidência. Sua entrevista:
247 – O que a senhora tem a dizer aos 50 milhões de
brasileiros que recebem benefícios do Bolsa Família depois que a Câmara aprovou
a abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff?
TEREZA CAMPELLO -- Eu diria que é bom ficar preocupado com o
que está acontecendo. O golpe é contra os pobres.
247 – Por que a senhora diz isso?
TEREZA CAMPELLO -- Esta é a visão que podemos encontrar no
programa Ponte para o Futuro e nas poucas palavras do vice presidente Michel
Temer dedicadas ao assunto. Com sutilezas maiores ou menores, muitas vezes só
percebidas por especialistas, estamos falando em diminuir benefícios de quem
faz parte do programa, ou cortar o tempo de permanência, ou tomar providências
que, cedo ou tarde, implicam em diminuir os gastos de hoje. O mapa da votação
do impeachment, no domingo, mostrou isso.
247 – Como assim?
TEREZA CAMPELLO --Uma análise feita pelo site Nexo é bastante
didática a respeito. Além de estudar o comportamento de cada bancada
partidária, o Nexo também examinou o comportamento de cada deputado, de acordo
com patrimônio pessoal. É um critério interessante, já que os partidos
podem ser muito parecidos entre si, como acontece hoje em dia, mas temos
uma sociedade que continua dividida em classes, entre ricos e pobres. O
levantamento mostra um dado que ninguém pode dizer que é simples coincidência:
quanto maior patrimônio pessoal de um parlamentar, maiores as
chances de que tenha votado a favor do impeachment. São números enfáticos.
247 – Pode dar exemplos?
TEREZA CAMPELLO -- O impeachment foi apoiado por 80% dos
parlamentares com patrimônio superior a 2 milhões de reais, que era a faixa
mais alta possível do levantamento. Já na faixa mais baixa, inferior a R$
500.000, esse apoio foi real, mas um pouco superior a 60%. Num caso, a rejeição
ficou perto de 40%. Em outro, em 20%. Se você procurar saber se a cor da pele
tem alguma influência no voto, irá constatar a mesma coisa.
247 – Como foi isso?
TEREZA CAMPELLO -- Entre os 22 parlamentares que se declaram
pretos, quase 70% rejeitaram o impeachment. Entre os que se consideram brancos,
essa rejeição foi pouco acima de 20%. Naquele item da tabela que localiza os
pardos, a rejeição é um pouco acima de 30%.
247 – O que isso quer dizer?
TEREZA CAMPELLO -- Este mapa mostra como o debate sobre os
programas de proteção social e distribuição de renda continua tendo uma grande
importância na definição de decisões políticas, mesmo quando essa questão não
aparece de forma clara, e e até assume uma forma que parece distante,
autônoma, autônoma, como o impeachment da presidenta Dilma. As
visões diferentes sobre o Bolsa Família não sofreram grandes mudanças desde
outubro de 2003, quando Lula lançou o programa. O preconceito permanece,
assim como o apoio diferenciado por regiões.
247 – A senhora se surpreendeu com a rejeição do
impeachment na Bahia?
TEREZA CAMPELLO -- Não tive surpresas, na verdade. O
impeachment foi recusado pelas bancadas da Bahia, do Amapá, do Ceará, além de
ter dividido ao meio as bancadas do Piauí e do Acre. A posição da bancada
da Bahia não me surpreende. A dos demais estados do Nordeste também é
compreensível, pois foi a partir do governo Lula que a região passou a receber
um outro tratamento do governo federal, que envolve o Bolsa Família mas não só.
Envolveu investimentos importantes, na economia, na saúde, na assistência
social. Alguns casos chamam atenção.
247 – Por quê?
TEREZA CAMPELLO -- A Bahia é o estado com o maior número de
família beneficiárias do Bolsa: 1,4 milhão. O segundo estado é São Paulo, com
perto de 1,2 milhão. Mesmo assim, mais de 80% da bancada paulista apoiou o
pedido de abertura do processo de impeachment. É óbvio que não imagino que a
pessoa que recebe um benefício social irá, obrigatoriamente, pressionar o
parlamentar para defender o governo por causa disso. Sempre condenamos
essa visão eleitoreira dos programas sociais. Não é assim que as coisas funcionam.
Mas é um comportamento diferente daquele que se pode ver outros lugares.
247 – A senhora acha que há preconceito contra os
programas sociais?
TEREZA CAMPELLO -- Há muitas coisas e agora não estou falando
de São Paulo mas do país inteiro. Muitas pessoas que não recebem o Bolsa
Família tem preconceito, sim. Acham que os beneficiários usam o recurso
recebido para ficar descansando em casa em vez de trabalhar. Não é um
problema brasileiro. A Ministra Marisol Touraine, responsável pela assistência social
na França, me contou que enfrenta o mesmo problema em seu país, sempre que se
anuncia algum reajuste nos benefícios recebidos.
247 – Mas a visão de que as pessoas usam benefícios
para não trabalhar pode ser ouvida em vários lugares...
TEREZA CAMPELLO -- Eu digo que é preconceito porque a imensa
maioria dos beneficiários trabalha, e trabalha duro. A diferença é que mesmo
assim ganham tão pouco que não conseguem ter direito a uma vida digna com
aquilo que recebem no final do mês e por isso necessitam da proteção do Estado. Por
outro lado, muitas pessoas que recebem o Bolsa sentem o peso do preconceito e
temem ser estigmatizadas.
247 – Como é isso?
TEREZA CAMPELLO -- Com doze anos de existência, o
Bolsa Família participou de várias histórias vitoriosas. Milhares de pessoas
conseguiram superar uma herança de dificuldades graças a seus méritos e a muito
empenho pessoal. Também contaram com benefícios sociais que permitiram acesso a
oportunidades antes negadas a seus pais e avós. Mas nem todas ficam à vontade para
admitir isso. Num país de distânciase preconceitos imensos, nem todos conseguem
reconhecer que receberam um benefício legítimo. Estamos falando de um direito
assegurado em lei, com base no artigo 3o da Constituição que diz que um de seus
objetivos fundamentais é erradicar a pobreza e a marginalização. O medo do
estigma da pobreza e, ainda mais, do pobre preguiçoso, é muito grande. Está
dentro das pessoas, mesmo daquelas que sabem por experiência própria que a
verdade é outra.
247 – De que forma esse preconceito reaparece no
debate atual?
TEREZA CAMPELLO -- O retorno se faz pela via tradicional. Os
argumentos políticos são apresentados sob uma cobertura técnica, o que já
afasta o cidadão menos avisado e impede uma discussão bem informada.
247 – No programa Ponte para o Futuro, pode-se ler
o seguinte objetivo: "estabelecer uma agenda de transparência e de
avaliação de políticas públicas, que permita a identificação dos beneficiários,
e a análise dos impactos dos programas. O Brasil gasta muito com políticas públicas
com resultados piores do que a maioria dos países relevantes". Como
entender isso?
TEREZA CAMPELLO -- Não dá para entender a não ser como
um eufemismo para tomar medidas amargas, que o cidadão comum terá dificuldade
para aceitar. É espantoso para começar que um texto de quem pretende falar pelo
governo fale da existência de "países relevantes." Isso implica em
sugerir que existem aqueles que não são relevantes, o que é, por si só, uma
manifestação preconceituosa em relação a povos e nações inteiras. Isso não fica
bem para um governante de um país solidário e generoso como o nosso. No caso
concreto, implica em tentar negar uma verdade elementar: o Bolsa Família é um
dos mais sucedidos programas de distribuição de renda do planeta, como provam
os indicadores de redução da desigualdade, nossa saída do mapa da fome da ONU e
o próprio apoio da população ao programa. Foi esse suporte popular, essa
disposição da população para defender uma conquista dele, que garantiu a
sobrevivência do Bolsa ao longo de todos os ataques enfrentados por mais de uma
década. O reconhecimento dos méritos do programa é tão grande que tivemos de
criar um espaço especial, na agenda do Ministério, para receber técnicos e
delegados estrangeiros que querem saber como é nosso trabalho. Os números de
redução do trabalho infantil, reconhecidos pelo Premio Nobel Kailash Satyartis,
que acompanha nosso trabalho há vários anos, são claros a esse respeito.
247 – O texto também fala que "o Brasil gasta
muito" com políticas públicas. Como explicar essa frase?
TEREZA CAMPELLO -- É uma forma tecnocrática de anunciar que
se pretende gastar menos sem apontar uma razão aceitável para isso. Nada mais.
Se nós temos um programa que tende a ser universal, e chega a 25% da população,
eles estão preocupados com o foco, com o particular. Já se falou em limitar o
programa a 10% da população. Da última vez, falaram em 5%. É a transformação do
Bolsa Família, programa de distribuição de renda associado ao desenvolvimento,
num programa compensatório, destinado apenas a mitigar o sofrimento de parcelas
miseráveis da população. Sua base é a antiga visão norte-americana sobre a
desigualdade social, onde se procura responsabilizar o indivíduo por sua
situação, sem enxergar sua colocação no contexto de determinada sociedade. Na
base deste raciocínio, a miséria tem duas causas: ou a pessoa é preguiçosa; ou
é uma perdedora irrecuperável, sem animo nem competência para encontrar seu
lugar no mundo.
247 – Nos últimos anos, o PSDB, que apoia o
impeachment, chegou a reivindicar-se como o verdadeiro criador do Bolsa
Família. Não é estranho que o programa de Michel Temer faça críticas ao
programa?
TEREZA CAMPELLO -- Não acho estranho. Esse comportamento só
mostra que a oposição não sabe direito do que está falando. No plano
federal, o PSDB começou a pensar o Bolsa Escola e o Bolsa Alimentação em
2001. Eram iniciativas que pretendiam dar musculatura a dois possíveis
candidatos na campanha presidencial do ano seguinte. Uma delas para o Paulo
Renato de Souza, ministro da Educação. A outra para José Serra, da Saúde. Os
programas tucanos nesse terreno nunca passaram de iniciativas eleitorais, que
não trouxeram saldo nenhum, até porque eles nunca venceram eleições
presidenciais para que pudessem colocar suas ideias em prática. A rigor, não
sabem o que foi feito nem como se garantiu o atendimento a 50 milhões de
brasileiros.
247 – Mas em Minas Gerais, os governos do PSDB
tiveram um programa, chamado Travessia, que é apresentado como versão local
alternativa ao Bolsa Família...
TEREZA CAMPELLO -- Só para dar uma ideia do que estamos
falando. Se você somar os benefícios distribuídos pelo Travessia entre 2008 e
2014, fará uma descoberta espantosa. O total gasto é inferior a um único mês de
Bolsa Família no Estado de Minas Gerais.
http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/227767/%E2%80%9CGolpe-%C3%A9-contra-os-pobres%E2%80%9D.htm