línio Fraga (Email)
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RIO - Rubem Fonseca não podia ser lido por enfocar a “face obscura da
sociedade” e fazer alusões desmerecedoras aos responsáveis pelo destino
do Brasil. Aguinaldo Silva deveria ter obra recolhida porque narrava
caso de homossexualidade nas Forças Armadas e ofendia militares e
padres. Cassandra Rios passava uma visão nociva e deprimente de
relacionamentos ao narrar uma conquista lésbica.
A literatura brasileira não produzia esses ataques morais de modo isolado, mas sim como parte de um plano subversivo contra a segurança nacional. Era assim que a ditadura via a produção literária nacional. Os militares reagiam proibindo e recolhendo livros. Num único caso extremo, prenderam um autor. O perigo estava na lombada, mesmo que fosse simplesmente o dorso de um livro.
Esta memória das trevas, explicada em detalhes por meio de documentos inéditos, vem à luz com a publicação de “Repressão e resistência — Censura a livros na ditadura militar” (Edusp/Fapesp), de Sandra Reimão, doutora em Comunicação e Semiótica e livre docente na Escola de Comunicações, Artes e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP). O estudo revela a lógica e a documentação que justificou a censura de livros nos 18 anos em que foi regulamentada por lei depois do golpe de 1964. A atividade vigorou oficialmente entre 1970, quando tornada lei por decreto, e 1988, quando abolida pela promulgação da nova Constituição, resultando na proibição ou no recolhimento de ao menos 490 livros. A maior parte por serem “atentatórios a moral e aos bons costumes”. Os números referem-se aos processos encontrados no Arquivo Nacional, mas é impossível saber se refletem a totalidade dos casos.
— Até a criação do Departamento de Censura, a difusão da atividade era diluída entre as autoridades da estrutura política. Antes de 1970, houve atos de violência contra editores, apreensões de livros, invasões de livrarias, ataques contra intelectuais engajados. Mas não havia a estruturação de um sistema único de censura — afirma Sandra Reimão.
O mais perseguido nome do período foi o editor Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, que por diversas vezes foi preso, teve a editora invadida e acumulou dezenas de obras apreendidas. Segundo Elio Gaspari, em “A ditadura envergonhada”, o presidente Castello Branco reconheceu as ações de seu próprio governo contra Silveira, em 1965, como sendo de “terror cultural”. Era uma época tão confusa que os militares proibiram a circulação do clássico da literatura erótica “Kama sutra” com o mesmo fervor com que apreenderam em uma feira de livros em Niterói a encíclica “Mater et Magistra”, do papa João XXIII.
— Esse tipo de violência já criava um ambiente de autocensura, porque publicar livros custava relativamente mais caro do que hoje. O risco de ter uma edição apreendida ou uma editora invadida causava muita insegurança. Para o Estado autoritário, os subversivos queriam minar os valores morais da sociedade como forma de atingir a segurança nacional — analisa Sandra.
A censura foi então estruturada e profissionalizada. Mas o cerceamento à publicação de livros no Brasil foi, comparativamente, mais brando e menos efetivo do que em outras áreas, como o cinema e a televisão. Seus anos de maior pico foram 1975, 1976 e 1978, com 102, 61 e 62 obras censuradas, respectivamente.
O decreto 1.077, de 26 de janeiro de 1970, que regulamentou a ação da censura, deixava claro as preocupações dos militares: “Tem se generalizado a divulgação de livros que ofendem frontalmente à moral comum; tais publicações e exteriorizações estimulam a licença, insinuam o amor livre e ameaçam destruir os valores morais da sociedade; o emprego desses meios de comunicação obedece a um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional.”
Como o Brasil publicava cerca de dez mil livros por ano e o departamento responsável tinha pouco mais de duas centenas de técnicos, a censura a livros era provocada por queixas de autoridades ou alertas enviados por cartas de pessoas comuns. O delegado Sérgio Paranhos Fleury prendeu Renato Tapajós, autor de “Em câmera lenta”, primeira ficção sobre a luta armada brasileira — único caso de escritor levado à cadeia por obra publicada —, “uma apologia do terrorismo, da subversão e da guerrilha em todos os seus aspectos”, no dizer do policial.
Indicado ao prêmio Jabuti 2012 entre os dez melhores livros na área de comunicação, “Repressão e resistência” mostra os mecanismos internos da ditadura. Segundo documentos descobertos por Sandra Reimão, o técnico da censura Raymundo F. de Mesquita analisou “Feliz ano novo”, por exemplo, como um livro que retrata “personagens portadores de complexos, vícios e taras, com o objetivo de enfocar a face obscura da sociedade na prática da delinquência, suborno, latrocínio e homicídio, sem qualquer referências a sanções”. Assinado em 3 de dezembro de 1976, o parecer embasou a proibição do livro em todo o território nacional.
“Dez estórias imorais”, de Aguinaldo Silva, foi proibido por causa de dois de seus dez contos. Um porque narrava o envolvimento homossexual de um marinheiro com um capitão de corveta no navio Baependi. E outro por “ofender a igreja com críticas mordazes e indecentes sobre monges e padres” e citar “ofensa aos militares em geral, chamando-os de estúpidos”, como analisou o técnico da censura Augusto da Costa.
A escritora mais censurada no Brasil foi Cassandra Rios, autora de livros eróticos. Um parecer dizia: “O livro de Cassandra Rios (“Copacabana Posto 6 — A Madrasta”) traz mensagem negativa, psicologicamente falsa em certos aspectos de relacionamento, nociva e deprimente, principalmente pela conquista lésbica da heroína junto à madrasta e o duplo suicídio final”, analisou a técnica Marina Duarte.
Senhora paulista ‘vetou’ Henry Miller
Carta de uma senhora de Lençóis Paulistas (SP) causou a censura de “Dias de paz em Clichy”, do americano Henry Miller, que narra sua rotina de vinho e luxúria em Paris nos anos 1930. “É um verdadeiro atentado ao pudor”, escreveu Usana Buranelli Minetto, em 2 de setembro de 1974, em manuscrito endereçado ao então ministro da Justiça, Armando Falcão.
Em outra carta ao ministro, Maria Helena Marques Dip, que se identifica como “mulher brasileira e mãe”, escreveu: “Não olvidemos jamais, senhor ministro, que vivemos ‘numa guerra total, global e permanente’ e o inimigo se vale do recurso da corrupção dos costumes para desmoralizar a juventude do país e tornar o Brasil um país sem moral e respeito aos olhos estrangeiros”, depois de pedir a censura a revistas que publicam um “carnaval de imoralidades”.
Sandra conclui seu livro lembrando uma série de atos de resistência à opressão e à censura. Manifestos de intelectuais e declarações fortes contra o arbítrio de nomes como Jorge Amado e Erico Verissimo. Mas a grande homenageada é o que chama de “legião de anônimos”, “pequenos e médios editores, impressores e livreiros que, no limite de seus campos de ação, atuaram com dignidade em prol da liberdade”.
A literatura brasileira não produzia esses ataques morais de modo isolado, mas sim como parte de um plano subversivo contra a segurança nacional. Era assim que a ditadura via a produção literária nacional. Os militares reagiam proibindo e recolhendo livros. Num único caso extremo, prenderam um autor. O perigo estava na lombada, mesmo que fosse simplesmente o dorso de um livro.
Esta memória das trevas, explicada em detalhes por meio de documentos inéditos, vem à luz com a publicação de “Repressão e resistência — Censura a livros na ditadura militar” (Edusp/Fapesp), de Sandra Reimão, doutora em Comunicação e Semiótica e livre docente na Escola de Comunicações, Artes e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP). O estudo revela a lógica e a documentação que justificou a censura de livros nos 18 anos em que foi regulamentada por lei depois do golpe de 1964. A atividade vigorou oficialmente entre 1970, quando tornada lei por decreto, e 1988, quando abolida pela promulgação da nova Constituição, resultando na proibição ou no recolhimento de ao menos 490 livros. A maior parte por serem “atentatórios a moral e aos bons costumes”. Os números referem-se aos processos encontrados no Arquivo Nacional, mas é impossível saber se refletem a totalidade dos casos.
— Até a criação do Departamento de Censura, a difusão da atividade era diluída entre as autoridades da estrutura política. Antes de 1970, houve atos de violência contra editores, apreensões de livros, invasões de livrarias, ataques contra intelectuais engajados. Mas não havia a estruturação de um sistema único de censura — afirma Sandra Reimão.
O mais perseguido nome do período foi o editor Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, que por diversas vezes foi preso, teve a editora invadida e acumulou dezenas de obras apreendidas. Segundo Elio Gaspari, em “A ditadura envergonhada”, o presidente Castello Branco reconheceu as ações de seu próprio governo contra Silveira, em 1965, como sendo de “terror cultural”. Era uma época tão confusa que os militares proibiram a circulação do clássico da literatura erótica “Kama sutra” com o mesmo fervor com que apreenderam em uma feira de livros em Niterói a encíclica “Mater et Magistra”, do papa João XXIII.
— Esse tipo de violência já criava um ambiente de autocensura, porque publicar livros custava relativamente mais caro do que hoje. O risco de ter uma edição apreendida ou uma editora invadida causava muita insegurança. Para o Estado autoritário, os subversivos queriam minar os valores morais da sociedade como forma de atingir a segurança nacional — analisa Sandra.
A censura foi então estruturada e profissionalizada. Mas o cerceamento à publicação de livros no Brasil foi, comparativamente, mais brando e menos efetivo do que em outras áreas, como o cinema e a televisão. Seus anos de maior pico foram 1975, 1976 e 1978, com 102, 61 e 62 obras censuradas, respectivamente.
O decreto 1.077, de 26 de janeiro de 1970, que regulamentou a ação da censura, deixava claro as preocupações dos militares: “Tem se generalizado a divulgação de livros que ofendem frontalmente à moral comum; tais publicações e exteriorizações estimulam a licença, insinuam o amor livre e ameaçam destruir os valores morais da sociedade; o emprego desses meios de comunicação obedece a um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional.”
Como o Brasil publicava cerca de dez mil livros por ano e o departamento responsável tinha pouco mais de duas centenas de técnicos, a censura a livros era provocada por queixas de autoridades ou alertas enviados por cartas de pessoas comuns. O delegado Sérgio Paranhos Fleury prendeu Renato Tapajós, autor de “Em câmera lenta”, primeira ficção sobre a luta armada brasileira — único caso de escritor levado à cadeia por obra publicada —, “uma apologia do terrorismo, da subversão e da guerrilha em todos os seus aspectos”, no dizer do policial.
Indicado ao prêmio Jabuti 2012 entre os dez melhores livros na área de comunicação, “Repressão e resistência” mostra os mecanismos internos da ditadura. Segundo documentos descobertos por Sandra Reimão, o técnico da censura Raymundo F. de Mesquita analisou “Feliz ano novo”, por exemplo, como um livro que retrata “personagens portadores de complexos, vícios e taras, com o objetivo de enfocar a face obscura da sociedade na prática da delinquência, suborno, latrocínio e homicídio, sem qualquer referências a sanções”. Assinado em 3 de dezembro de 1976, o parecer embasou a proibição do livro em todo o território nacional.
“Dez estórias imorais”, de Aguinaldo Silva, foi proibido por causa de dois de seus dez contos. Um porque narrava o envolvimento homossexual de um marinheiro com um capitão de corveta no navio Baependi. E outro por “ofender a igreja com críticas mordazes e indecentes sobre monges e padres” e citar “ofensa aos militares em geral, chamando-os de estúpidos”, como analisou o técnico da censura Augusto da Costa.
A escritora mais censurada no Brasil foi Cassandra Rios, autora de livros eróticos. Um parecer dizia: “O livro de Cassandra Rios (“Copacabana Posto 6 — A Madrasta”) traz mensagem negativa, psicologicamente falsa em certos aspectos de relacionamento, nociva e deprimente, principalmente pela conquista lésbica da heroína junto à madrasta e o duplo suicídio final”, analisou a técnica Marina Duarte.
Senhora paulista ‘vetou’ Henry Miller
Carta de uma senhora de Lençóis Paulistas (SP) causou a censura de “Dias de paz em Clichy”, do americano Henry Miller, que narra sua rotina de vinho e luxúria em Paris nos anos 1930. “É um verdadeiro atentado ao pudor”, escreveu Usana Buranelli Minetto, em 2 de setembro de 1974, em manuscrito endereçado ao então ministro da Justiça, Armando Falcão.
Em outra carta ao ministro, Maria Helena Marques Dip, que se identifica como “mulher brasileira e mãe”, escreveu: “Não olvidemos jamais, senhor ministro, que vivemos ‘numa guerra total, global e permanente’ e o inimigo se vale do recurso da corrupção dos costumes para desmoralizar a juventude do país e tornar o Brasil um país sem moral e respeito aos olhos estrangeiros”, depois de pedir a censura a revistas que publicam um “carnaval de imoralidades”.
Sandra conclui seu livro lembrando uma série de atos de resistência à opressão e à censura. Manifestos de intelectuais e declarações fortes contra o arbítrio de nomes como Jorge Amado e Erico Verissimo. Mas a grande homenageada é o que chama de “legião de anônimos”, “pequenos e médios editores, impressores e livreiros que, no limite de seus campos de ação, atuaram com dignidade em prol da liberdade”.
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